Quando moça,
dezesseis ou dezessete anos, pensava em fazer uma tatuagem. Mas o quê? Flor,
lua, estrela, guitarra, lira...? Pensei até numa de Papai Noel.
O local também
deveria ser estratégico, visível e invisível. Não poderia aparecer em demasia e
nem ficar tão oculta. Escolhi, então, a omoplata esquerda.
Pensei, questionei e
remoí esta ideia. E se me perguntassem o porquê da tatoo, teria que dizer ‘não
sei’. E na época não sabia mesmo. Hoje sei que cabeça de adolescente é um vaso
cheio de flores murchinhas. E saberia dizer também, hoje, que as melhores
tatuagens nós mesmos fazemos dentro de nós. Mas adornos não se discutem.
Nesta época fui para
uma praia. Como não gosto de permanecer no sol, prefiro apreciar a aurora e a
água, fui caminhar sobre a areia.
Adiante ia uma
senhora, com seus 70 anos bem puxados, andava muito lentamente. Alcancei-a e vi
algo na parte posterior de seu pescoço. A princípio pensei que fosse um inseto
grande, mas era grande em demasia para ser inseto. E se fosse um molusco? Como
teria ido parar ali?
Aproximei-me mais e
vi. Era uma tatuagem imersa em meio às rugas. Cheguei quase em cima e li ‘meu
grande amor’. Fiquei emocionada, senti um aperto no coração, uma dor de
finitude, uma inquietação.
Se ela está a andar
só pela praia, onde andará seu grande amor? Dormindo ainda? É possível, os
homens dormem mais. Divorciada? Talvez. Viúva? É isto.
Assim, fui andando,
ora a bombordo, ora a estibordo, para que ela não notasse minha curiosidade.
Mas parecia que ela sentia meu pensamento e tantas perguntas me fiz! Ali, entre
e areia e o mar, havia alguém com uma história de amor sem palavras, solitária.
Não me contive e a abordei.
- A senhora vem caminhar
todos os dias?
- Sim, filha. É o
melhor momento do meu dia, ver que a vida nasce cheirosa, e por inteiro. Bom
que jovens apreciem isto também. Disse-me ela.
- Gostei da sua
tatuagem. Esta é pra toda vida.
- Ah, a cicatriz,
você quer dizer? Porque a tatuagem, mesmo, durou pouco.
Com medo de ser
audaciosa, fiz-lhe a pergunta mais cretina que havia por perto.
- A senhora enviuvou?
- Vou contar para
você o que foi ‘meu grande amor’. Eu tinha a sua idade, e durou oito meses.
Foram oito meses para o resto de minha vida. Acreditei que o amor poderia ser
gravado, escrito, exibido... Que seria meu Príncipe Encantado. Duvidei que
deixasse marcas também na alma. Sabe o que é esta tatuagem? Paixão. Grande amor
foi o que eu idealizei. Muito tarde descobri que o Príncipe Encantado mora no
brejo e faz ‘croac’.
- A senhora teve uma
desilusão, não foi?
- Sim, e ela é minha
companheira. É o livro que não escrevi. Mas você gostou da frase ‘meu grande
amor’, certo?
- Como era este
grande amor? - Fiquei curiosa, um homem merecer tamanho empenho!
- Você vai achar
graça do meu trocadilho, mas realmente ele era um amor grande, 1,80m de altura,
mas de um ‘grande amor’ só teve ideias, e a mais concreta foi esta tatuagem.
O tempo foi passando,
fiquei parada, em
suspense. Amor então tem vários significados, pensava comigo
mesma. Seguimos caminhando, e nem sentimos o sol nos castigar.
- Vamos entrar na
água?
- Não! - Esquivou-se
ela.
- Uso fralda, molhar
vai ficar ridículo.
Ah, não! Tatuada e de
fraldas. Jamais!
Foi aí que desisti da
minha.
Fomos para uma sombra
a confabular sobre o tempo, mas eu já não estava mais vivendo aquele instante.
Pensei que, se aquela
tatuagem trazia uma tão linda frase e ela chamava de cicatriz, o que seriam as
cicatrizes então, dentro de sua alma?
Tive vontade de falar
alguma coisa, algo que uma adolescente pudesse consolar uma vida de mais de
setenta anos. Odeio chavões tipo ‘a vida é assim...’
‘Assim’, sem
coletivo, de um modo só seu, num silêncio que o tempo vai levando e criando,
com toda graça e também desgraça, de uma vida de esperanças, igual tatuagem em
pele imatura.
Hoje, admiro as
tatuagens em todas as pessoas. É arte. Tatuadores são
artistas.
Sou criteriosa, aliás, com todo e qualquer tipo de arte. Logo, tatuagem é uma bela arte.
Mas não me arrependo
de não ter feito uma. Porque para isto, teria que dar uma espiada no futuro, e
assim, para tantas coisas que fazemos hoje.