Se saudades fosse vida, eu jamais
morreria.
Havia, na minha infância, uma maneira
de se viver sem horários. Acho que isto não é observado só por mim, e quando me
descobri, assim como gente, observava que as pessoas corriam esbaforidas, tanta
coisa iam fazendo.
Uma lamentação total! Mas que coisa
sem graça, pensava eu. Tanta coisa elas fazem, estas pessoas grandes, mas não
conseguem brincar com a gente pequena. Crescer dói. Será? Doeu.
Lembro da Anita, traquina e introspectiva,
éramos amiguinhas de ‘artes’ e escola.
Mas ela era diferente de todos. Perspicaz,
mas uma grande amiga.
–
Sai do galinheiro, Nita – Gritava sua mãe.
–
Estou esperando o ovo ‘nascer’– Dizia ela – Vou levar ele aí quentinho.
E
ficava lá até a galinha botar o ovo, quase apanhando-o com a mão. Existe
maravilha mais exuberante do que a infância junto à natureza? Por certo que
não.
Certa vez, Anita me contou em segredo,
tinha horror às minhocas.
–
É que minha mãe levou um tremendo susto, de tremer. Foi quando eu estava dentro
dela, pegou uma minhoca na mão sem querer e quase desmaiou, aí eu tremo também
até hoje.
–
Hum, mas minhoca não morde e nem veneno tem, e estamos a brincar até com
cobras!
–
Ah, mas a minhoca dá pulinhos... Nem pensar. A cobra se enrola ou sai correndo
– Dizia ela.
Bom que sendo inocentes, não
pensávamos nos adultos, eles sim, viviam aos berros.
Tínhamos amor aos animais. Anita
escondia até filhotes de ratos, e quando os ‘homens’ da casa iam caçar, ela
olhava para eles com mil suspeitas, não tinha medo das armas, mas do resultado
que elas trariam.
–
Ódio, que ódio! – Ela dizia e chorava, depenando passarinhos.
–
Depena. – Sua mãe dizia – A vida é assim.
–
Passarinho está morto não é assim: ‘vida’! Então pra quê criar galinhas,
porcos...?
–
Filha, há uma grande abundância na natureza, a família é grande, entenda.
–
Prefiro descascar amendoins.
E lá íamos as duas sangrar o coração
da infância junto às penas dos passarinhos.
O pior foi o desplante do padre Quide,
parente de Anita.
Engaiolou um gato como se fosse um
coelho, depois do tempo esgotado ele preparou um magnífico jantar com a receita
de uma massa ‘especialíssima’ com carne de ‘coelho’. Na verdade, todo mundo
comeu gato, só ficamos sabendo uns dias depois.
Tínhamos uns cinco anos de idade e jamais esquecerei, pois Anita, a
lamentar-se, dizia:
–
Ele é um padre sem pensamento. Não vamos mais à igreja quando ele rezar a
missa.
–
Não, claro que não. Jesus viu isso, e está do nosso lado.
Mas qual! Missa era como ir para a
escola. Mas Anita não deixou por menos. Juntas, entrávamos pela porta da frente
como santas, e fugíamos pela porta da sacristia.
–
Aha! Comedor de gatos, me vinguei! – Dizia ela.
Mas minha amiga era muito peralta,
acompanhá-la não era fácil e certa feita aconteceu.
–
Jesus, é oito horas, cadê Anita? – Sua mãe, alvoroçada, se aquietava.
A vizinhança já se preparava para a
vigília noturna e eu junto, aliás, era a que mais chamava.
–
Anitaaaaaaaaaaaaaaa!
–
Nitaaaaaaaaaaaaaaa!
–
Nitinhaaaaaaaaaaaaaa!
As várias maneiras de se chamar um
animalzinho de estimação na infância surtiam bons resultados, menos para com
Anita.
Noite avança... E de repente, chega
Anita esbaforida com metade da saia (naquela época não se usava calça comprida)
e só um chinelo. Ela não esperou ninguém perguntar, foi atropelando as palavras
e desabafou.
–
Me perdi no mato! Fui comendo amoras. Havia muitas! Era escuro no mato.
Pisei num formigueiro, foi lá que
ficou o chinelo. E depois tinha uma terra macia, me pareceu ter minhocas, aí eu
corri muito. Parei e sentei num tronco. E vim embora, mas não dava certo, ia
parar sempre no mesmo tronco. Então comecei a andar retinha, só que tinha muito
galho e quase perdi a saia. E saí, oras.
–
Viu que ‘oras’ são? Viu que até o padre Quide estava a tua procura?
–
Mas tinha tanta amora, tanto ninho de passarinho...
–
Santa penitência. A infância é um cordeirinho nos braços de Deus! É por isso
que as crianças são protegidas. – Disse padre Quide.
Eu não esqueci as palavras dele, por
causa do cenário do momento da ‘aparição’ de Anita. Havia muito vagalume. Era
noite de verão sem lua, onde eles pareciam estrelas refletidas em tudo, no
chão, nas mãos, nas árvores...
–
Parecem anjinhos. – Anita observou.
–
Então foram eles que te trouxeram de volta, repicou sua avó.
A noite não foi muito tranquila, mas,
ao amanhecer, foi um estardalhaço de sol, rios, pássaros, balidos, relinchos...
E o grito de Anita.
–
Ela está botando o ovo! Teremos patos, patinhos e não só pintinhos.
A bem da verdade há alguns meses
tinham acolhido uma pata com uma machucadura no pescoço, mas a pata melhorou e
ficou pelo pátio, e como no vizinho haviam patos...
Minha amiga estava sempre de
prontidão, volta e meia levantava o rabo da pata para uma checagem de fatos, e
nada.
E nesta manhã ela foi bisbilhotar o galinheiro
e viu a pata agachada, aí sucedeu o melhor, o ocaso da infância botava mais um
ovo.
–
Santo Deus, para quê tanto fiasco por causa de um ovo de pato? – Disse sua mãe.
–
É da pata, mãe. Ela vai ter patinhos! O ovo dela é igual a tua barriga quando João
nasceu. Fecha ela na casinha, para ele crescer.
–
Não sei o que faço com tanta imaginação dentro de uma criatura tão minúscula! –
Exclamou sua mãe.
Hoje eu diria que realmente a
imaginação era tanta, mas tanta, que se não fosse a infância, nem sonhar saberíamos.
Sentadinhas na ponte, contávamos os
dias para o Natal. Eram planos que só Deus sabe até hoje.
–
Há um pinheiro com uns galhos bons para armarmos a árvore de Natal. Eu subo com
a serra, não conta para o meu pai, e te alcanço o galho... E a gente achou por
aí...
Também não sabíamos que gente grande
fazia de conta que acreditava. Se não fosse isso, não teríamos tantos anjos
nessa etapa da vida.
Dói saber que hoje não se cortam mais
galhinhos, e sim as árvores inteiras.
Assim fomos crescendo, amargando a
realidade. A Infância estava quase subindo no muro, e foi nesta época que Anita
começou a sossegar.
Fomos tomar banho de rio e de uma
pedra ela se jogou, como sempre fazíamos, mas o rio havia baixado e ela deu com
a testa em uma rocha. Não ficou nada apresentável.
Exames, observações... Mas salva.
–
Alguém está roubando a água dos rios. – Foi seu comentário.
Hoje sabemos que não há como roubar a
água dos rios.
Anita é bióloga atualmente, ela sabe
como os rios secam, assim como fica um tanto árida aquela vontade de ser
inocente, e não se pode mais voltar.
Das saudades, a maior, é a de ter sido
infantil.